O corte e seus recortes, 2018
Raphael Fonseca
Texto da exposição Zonas de Gatilho, SIM Galeria, São Paulo, Brasil, 2018.
As relações entre a fotografia e a paisagem parecem ser um dos interesses centrais da pesquisa de Julia Kater. Quando observamos seus trabalhos realizados desde 2011, a linguagem fotográfica aparece de forma insistente com um olhar que registra ambientes abertos nos quais a água é muitas vezes predominante. Em contraste com essas imagens, em outras obras vemos elementos que remetem a quintais, mesas e objetos domésticos.
Esse conjunto remete a ambientes que recordam de maneira silenciosa as férias e as trocas afetivas que se dão com alguma rotina em um mesmo lugar. São fotografias que nascem da contemplação de algo maior que a escala humana: da natureza e de sua imensidão e, ao mesmo tempo, do vazio proporcionado pela passagem do tempo.
A maneira como a artista apresenta essas obras, porém, não a coloca na esteira da fotografia clássica; seu interesse está na sobreposição de camadas de imagem. A fotografia, mesmo que emoldurada, traz um volume e uma tridimensionalidade que transformam a imagem habitualmente vista como um espelho do real em uma massa de informações. O resultado não se trata de algo visceral; os recortes distribuídos, mesmo que irregulares, parecem pensados de maneira cirúrgica. As linhas sobrepostas a uma imagem remetem, por exemplo, às silhuetas de montanhas ou ao contorno do corpo humano. Desenha-se com a fotografia sobre a fotografia, e são sugeridas novas narrativas distribuídas nas imagens de uma mesma série.
A presente exposição, intitulada “Zonas de gatilho”, dá prosseguimento e amplia essa investigação de Julia Kater. As experimentações com as imagens fotográficas permanecem, mas os resultados exploram mais os vazios entre os elementos visuais. “Rota I” e “Rota II”, por exemplo, trazem fotografias de árvores que têm seus troncos e galhos recortados, possibilitando que o público possa ver algo circunscrito pelo desenho de suas folhas. Esses fantasmas da paisagem, assim como outras imagens que seguem a sobreposição de ambientes domésticos e silhuetas, parecem falar mais sobre recorte do que colagem – ou seja, menos sobre a justaposição de informações visuais e mais sobre o vazio entre elas. Parecem ser convites à operação imaginativa do espectador em relação às coisas que ali não estão.
A pesquisa de Kater se desenvolve entre cortes e recortes. Partindo do princípio de que a fotografia é uma espécie de corte dentro da experiência da visão – com suas escolhas, limites tecnológicos e dimensões enquanto objeto –, é possível afirmar que interessa à artista o tráfego entre as matrizes de suas imagens e as costuras possíveis de serem feitas a partir delas. A opção tomada nessa exposição por mostrar esses grandes recortes suspensos em varais que tensionam sua fragilidade e volume denota o aprofundamento de sua pesquisa e o desejo de sair do lugar seguro – e por vezes asfixiante – das molduras.
Essa mesma operação entre a totalidade de uma imagem e a possibilidade de desdobrá-la em outras se faz presente em outros dois trabalhos apresentados. Em “Lugar que chegamos”, a artista também utiliza a fotografia, mas em menor escala e com um resultado mais sutil. Parte-se da imagem de uma multidão, e esta é decomposta em sessenta imagens menores em que partes desses corpos são mostrados individualmente. De maneira mais radical do que nos exemplos anteriores, o vazio – agora da folha de papel – parece ser o protagonista e se sobrepõe a esses pedaços de gente. Cada um está por si.
Já em “Acordo”, vídeo em preto-e-branco, o nosso olhar é direcionado para o céu. A câmera registrou nuvens, e na edição a artista criou encontros fictícios entre elas nos quais suas cores são alteradas, e uma espécie de geografia temporária é imaginada. Novamente temos perante os nossos olhos o interesse da artista na justaposição de imagens e na criação de mundos a partir da contemplação da natureza. De maneira indireta, a obra pode nos levar a refletir sobre divisões territoriais e suas relações com o espaço aéreo. De quem é, por exemplo, a chuva que cai na fronteira do México com os Estados Unidos? Talvez, como o vídeo sugere, de um outro lugar felizmente sem nome.
Por fim, conforme desenvolvido desde a série “Desenhos livres sobre temas impostos”, a artista tem experimentado para além da fotografia e em diálogo com suas pesquisas como pedagoga. Kater tem interesse nos processos de expressão visual de crianças por meio de desenhos e suas primeiras experiências com a escrita. Com o papel carbono, ela consegue mensurar o modo como as crianças se utilizam o lápis e do papel e como o desenho feito em uma superfície pode se transferir para outra. Desenhos que ocupam diferentes folhas de papel se encontram impressos nas mesmas superfícies de papel carbono, trazendo desde seu início uma sobreposição de maneiras de criar formas.
De maneira análoga, na série intitulada “Carbono” a artista transfere elementos de desenhos infantis para a tinta a óleo sobre papel. Assim, o branco do papel é substituído pelo preto do óleo, e os desenhos com lápis se transformam em baixos-relevos. O universo infantil dessas experiências ganha o peso da matéria escolhida e, ao mesmo tempo, coloca o espectador para pensar sobre as relações entre os elementos vistos em cada uma das imagens. “Figura humana”, “Grafomotor” e “Retângulo” são alguns dos subtítulos que apontam para as diferentes atividades desenvolvidas pelas crianças. Enquanto algumas imagens apontam para a necessidade de se preencher todo o espaço – como nos exercícios grafomotores –, outras peças chamam a atenção pelo vazio, como visto nas séries mais geométricas. Nesses trabalhos, Kater lida com um novo corte e outros recortes. As matrizes agora são as folhas de papel, e as maneiras como esses desenhos podem ser especializados são seu modo de tecer novos sentidos.
Há aqui novamente a sensação do peso do tempo. Não aquele tempo entre o presente que olha a fotografia e o passado que remete ao clique, mas sim a possibilidade de observamos esses desenhos e nos recordarmos de nossas próprias garatujas, cadernos de caligrafia e imagens que dizíamos estarem daquele jeito por “não sabermos desenhar”. Ao relacionar as diferentes experiências existenciais do tempo que dão o tom da exposição, o título escolhido pela artista retorna à nossa reflexão: “Zonas de gatilho”, ou seja, o termo usado pela neurociência para se referir aos estímulos que, uma vez disparados no presente, remetem a algo do passado.
A partir dessa definição, podemos repensar a exposição de Julia Kater como um exercício de lidar com essa que é uma das coisas mais íntimas e misteriosas da existência humana: a memória. Seja através das sobreposições fotográficas que parecem nos levar a algum lugar que já percorremos, seja por meio de suas compilações de desenhos que nos trazem de volta às nossas experiências com o lápis e o papel, a sua pesquisa versa sobre algo que passou por nós e que não conseguimos colocar em imagens ou palavras.
Poderíamos chamar isto por “reminiscência”, mas fazê-lo seria novamente trancar a experiência da vida e da fruição das imagens em uma palavra. Mais vale permitir que o tempo e suas imagens nos levem para outros caminhos.
The cut and its cutouts, 2018
Raphael Fonseca
Exhibition text for "Trigger Zones," SIM Gallery, São Paulo, Brazil, 2018.
The relationship between photography and landscape seems to be one of the central interests in Julia Kater's research. When we observe her works created since 2011, photographic language appears insistently with a gaze that captures open environments where water is often predominant. In contrast to these images, in other works, we see elements that evoke backyards, tables, and household objects.
This collection evokes environments that silently recall vacations and emotional exchanges that occur within some routine in the same place. These are photographs born from the contemplation of something larger than human scale: nature and its immensity, and at the same time, from the emptiness provided by the passage of time.
However, the way the artist presents these works does not place her in the realm of classical photography; her interest lies in the overlaying of image layers. Photography, even when framed, brings a volume and three-dimensionality that transform the image, usually seen as a mirror of reality, into a mass of information. The result is not something visceral; the distributed, even irregular, cutouts seem to be thought out in a surgical manner. Lines overlaid on an image, for example, recall mountain silhouettes or the contour of the human body. Drawing with photography on photography, new narratives are suggested within the images of the same series.
The current exhibition, titled "Trigger Zones," continues and expands on Julia Kater's investigation. The experiments with photographic images continue, but the results explore more the gaps between visual elements. For example, "Route I" and "Route II" bring photographs of trees with their trunks and branches cut out, allowing the audience to see something circumscribed by the drawing of their leaves. These landscape ghosts, as well as other images that follow the overlap of domestic environments and silhouettes, seem to speak more about cutting than collage – that is, less about the juxtaposition of visual information and more about the void between them. They seem to be invitations to the viewer's imaginative operation regarding things that are not there.
Kater's research unfolds between cuts and cutouts. Starting from the principle that photography is a kind of cut within the experience of vision – with its choices, technological limits, and dimensions as an object – it is possible to affirm that the artist is interested in the traffic between the matrices of her images and the possible seams to be made from them. The option taken in this exhibition to show these large cutouts suspended on clotheslines that tension their fragility and volume denotes the deepening of her research and the desire to move away from the safe – and sometimes suffocating – place of frames.
This same operation between the totality of an image and the possibility of unfolding it into others is present in two other works presented. In "Place We Arrived," the artist also uses photography, but on a smaller scale and with a more subtle result. The image of a crowd is decomposed into sixty smaller images where parts of these bodies are shown individually. More radically than in the previous examples, the void – now of the paper sheet – seems to be the protagonist and overlaps these pieces of people. Each one stands alone.
In "Agreement," a black-and-white video, our gaze is directed to the sky. The camera captured clouds, and in editing, the artist created fictitious encounters between them in which their colors are altered, and a kind of temporary geography is imagined. Again, we have before our eyes the artist's interest in the juxtaposition of images and in the creation of worlds from the contemplation of nature. Indirectly, the work may lead us to reflect on territorial divisions and their relations with airspace. Whose rain is falling, for example, on the border between Mexico and the United States? Perhaps, as the video suggests, from another place thankfully without a name.
Finally, as developed since the series "Free Drawings on Imposed Themes," the artist has been experimenting beyond photography and in dialogue with her research as an educator. Kater is interested in the visual expression processes of children through drawings and their early experiences with writing. With carbon paper, she can measure how children use pencils and paper and how the drawing made on one surface can transfer to another. Drawings that occupy different sheets of paper are printed on the same carbon paper surfaces, bringing from their beginning an overlap of ways of creating shapes.
Similarly, in the series entitled "Carbon," the artist transfers elements of children's drawings to oil paint on paper. Thus, the white of the paper is replaced by the black of the oil, and the pencil drawings become bas-reliefs. The childlike universe of these experiments gains the weight of the chosen material and, at the same time, makes the viewer think about the relationships between the elements seen in each of the images. "Human Figure," "Graphomotor," and "Rectangle" are some of the subtitles that point to the different activities developed by children. While some images point to the need to fill the entire space – as in graphomotor exercises – other pieces draw attention to the void, as seen in more geometric series. In these works, Kater deals with a new cut and other cutouts. The matrices are now the paper sheets, and the ways in which these drawings can be specialized are her way of weaving new meanings.
Here again, there is a sense of the weight of time. Not the time between the present looking at the photograph and the past referring to the click, but rather the possibility of observing these drawings and remembering our own scribbles, handwriting notebooks, and images that we said were that way because "we didn't know how to draw." By relating the different existential experiences of time that set the tone of the exhibition, the title chosen by the artist returns to our reflection: "Trigger Zones," that is, the term used by neuroscience to refer to stimuli that, once triggered in the present, refer to something from the past.
From this definition, we can rethink Julia Kater's exhibition as an exercise in dealing with one of the most intimate and mysterious things of human existence: memory. Whether through photographic overlays that seem to take us somewhere we have already traveled, or through her compilations of drawings that bring us back to our experiences with pencil and paper, her research is about something that passed through us and that we cannot put into images or words.
We could call this "reminiscence," but to do so would be to again lock the experience of life and the enjoyment of images into a word. It is better to allow time and its images to lead us to other paths.