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Como se fosse, 2014

Eder Chiodetto

Leonardo Da Vinci descreveu, no século XV, a "Câmera Obscura" nos seus cadernos de notas:

"Quando as imagens dos objetos iluminados penetram num compartimento escuro, através de um pequeno orifício e se projetam sobre um papel branco situado a certa distância, veem-se, no papel, os objetos invertidos com suas formas e cores próprias".

Da Vinci conseguia, assim, projetar a paisagem do exterior de forma invertida para esse "quarto de desenhar", e podia então traçar o contorno da imagem para posteriormente pintá-la.

Nas diversas estratégias que a artista Julia Kater emprega, com o intuito de interrogar nossa percepção visual diante das mais diversas paisagens, uma delas é o uso de uma ponta seca que delineia formas sobre a superfície de um papel monocromático.

Essa estratégia remonta, de certa forma, à relação entre projeção de luz e desenho, como utilizada por Da Vinci em seu quarto de desenhar. Porém, a operação de Kater sobrepõe uma nova opacidade ao processo da câmara obscura. Afinal, não temos como saber se a paisagem que ela sutilmente nos sugere se encontra logo abaixo dessa superfície, obliterada por uma espécie de avalanche, se foi projetada sobre o papel ou, ainda, se estamos diante de uma livre criação, uma paisagem imaginária.

Entre querer saber e não saber, a paisagem sugerida se desprende desse embate racional para, enfim, ganhar autonomia como um símbolo a ressoar nas nossas ilimitadas fabulações.

A poética dessas tantas paisagens mutantes, que Kater evoca no percurso de sua produção, são pródigas em criar um deslocamento inesperado entre o visível e instâncias sensoriais que realizam conexões formais com ironia e perspicácia, como se o mundo, de repente, se reorganizasse diante dos nossos olhos por meio de uma memória que não é

histórica, mas sim uma lembrança da forma, do contorno e do volume das coisas e dos eventos que arquivamos durante nossa trajetória. São como referentes descarnados do seu contexto, que agora renunciam seu tempo- espaço no mundo para emergir com força – auxiliados também pelas incisões que a artista realiza na superfície – promovendo encontros e confrontos entre linhas, texturas, volumes, personagens e paisagens.

É por meio de choques e junções, espécies de atos falhos da capacidade ocular, que a artista nos convoca para pensar os jogos de representação da fotografia deslocados do referente imediato. É assim que a imagem de uma cachoeira descontinuada pelo corte da câmera, da série "Como se fosse", se prolonga placidamente pelo ombro de uma pessoa criando um desenho factível, mas ao mesmo tempo com ares surrealistas.

O recorte da cena, promovido pela câmera fotográfica, segue como foco de atenção da artista em outras duas séries. Ao perceber que fotografar consiste obrigatoriamente no exercício de subtrair o entorno, gerando uma fratura no tempo-espaço, Kater sobrepõe na série "Encontro" uma velatura que revela e esconde ao mesmo tempo, refazendo o quadro onde ocorre pontos de contato entre pessoas, formas, objetos. O encontro de figura e fundo promove um sumiço temporário de algo ou alguém na duração da paisagem, mas que, ao ser flagrado assim no instantâneo fotográfico, representa um apagamento irrevogável de uma das partes.

Em "Árvores Urbanas", o corte da cena é também protagonista, mas agora a artista nos leva a perceber não mais o hiato promovido pelo instante em que figura e fundo se amalgamam, mas sim numa inversão de polos que só um olhar em débito com o olhar enfastiado do cotidiano consegue ser arguto o suficiente para perceber.

O que parece ser uma mera observação sagaz, na verdade é uma imagem manifesto sobre como podemos reorientar nosso olhar a perceber o entorno com nuances que sublevam nossa percepção. Muitas vezes, o sentido artístico de um projeto pode estar na forma como ele desarma nosso olhar automatizado para o mundo, revelando assim parcelas de beleza e novas fronteiras do pensamento que se encontravam enclausuradas na paisagem cotidiana.

"Como se fosse" é uma espécie de noema da fotografia. As coisas definitivamente não são tal e qual a vemos ou como a fotografia as representa. Mas é como se fosse... Julia Kater, com sua poética envolvente e seu estilete preciso, abre fendas para investigar o que se oculta entre a aparência e a espessura do mundo.

As if it were, 2014

Eder Chiodetto

 

In the 15th century, Leonardo da Vinci described the “Camera Obscura” in his notebook:

“When the images of illuminated objects pass through a small round hole into a very dark room, if you receive them on a piece of white paper placed vertically in the room, you will see on paper all those objects in their natural shapes and colors.”

This way, da Vinci was able to project the outside scenery upturned into this “drawing room” and, thus, trace the outline of the image and then paint it.

Artist Julia Kater employs assorted strategies with the objective to question our visual perception of the most varied scenes, and one of such strategies is the use of dry embossing, which traces shapes on the surface of a monochromatic paper.

In a way, this strategy goes back to the relation between light projection and drawing, as utilized by da Vinci in his drawing chamber. However, Julia’s operation overlays a new opacity to the process of the camera obscura. In the end, there is no way of knowing if the landscape she subtly suggests can be found just underneath this surface, obliterated by a kind of avalanche, if it was projected on paper, or, still, if we are facing a free creation, an imaginary landscape.

Between wanting to know and not knowing, the suggested landscape detaches itself from this rational battle to ultimately gain autonomy as a symbol, echoing in our limitless fables.

The poetry of these many mutant landscapes that Kater evokes in the course of her production is remarkable in creating an unexpected displacement between the visible and sensory instances that ironically and wittily create formal connections, as if all of a sudden the world reorganized itself before our eyes by means of a memory that is not historical, but a memory of the shape, of the outline, and of the volume of things and events that we file during our trajectory. They are like referents disembodied from their context that now renounce their time-space in the world in order to powerfully resurface – also helped by the incisions the artist makes on the surface – promoting encounters and confrontations between lines, textures, volumes, characters, and landscapes.

It is by means of clashes and junctions, like parapraxis of the ocular ability, that the artist invites us to think the representation games of photography, detached from the immediate referent. This is how the image of a waterfall discontinued by the cut of the camera, from the series “As if it were”, placidly extends through the shoulder of a person, creating a feasible, but at the same time surrealistic, drawing.

The crop of the scene, promoted by the photographic camera, continues as the artist’s focus in two other series. In realizing that photographing consists in the exercise of subtracting the surrounding, creating a time-space fracture, Kater overlays, in the series “Encounter”, a coating that reveals and hides at the same time, recreating the portrait where points of encounters occur between people, shapes, objects. The confrontation between figure and background promotes a temporary disappearance of something or someone in the duration of the landscape, but, when captured in the snapshot, represents the irrevocable erasure of one of the parts.

In “Urban Trees”, the crop of the scene is also protagonist, but now the artist leads us to realize, instead of the hiatus promoted by the instant when figure and background merge, an inversion of poles that only an indebted look, bored by routine, can be shrewd enough to realize.

What seems to be a mere witty observation is in reality a manifesto image on how we can redirect our look into perceiving the surroundings with nuances that upheave our perception. Oftentimes, the artistic sense of a project can be the way it disarms our automatized look on the world, thus revealing parcels of beauty and new frontiers of thought that were confined in daily landscapes.

“As if it were” is a kind of photography noema. Things are definitely not as we see them or as photography represents them. But it is as if it were... Julia Kater, with her engaging poetic and precise stylus, opens gashes in order to investigate what hides between the appearance and the density of the world.

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