Quase um, 2021
Ana Roman
Texto da exposição Quase um, SIM Galeria, São Paulo, Brasil, 2021.
Diante dos trabalhos de Julia Kater, temos a sensação de que ela parece vagar sozinha, com sua câmera, entre as paisagens, olhando lentamente para a textura da natureza diante de seus olhos. Neste caminho do vagar é que ela encontra os grãos de saturação para suas imagens, nos quais a cor, o som e o movimento são fixados a partir do clique fotográfico, transformando-se em silêncio e em um fluxo atemporal e acalmado. Na série fotográfica Quase um, reunida na mostra individual da artista, ela se coloca em um limiar imaginário existente entre o mar e o céu. Algumas das fotografias partem de uma ideia de contínuo, que nos confunde enquanto espectadores, e, em outros casos, há uma baixa linha do horizonte, que se estende e divide nosso campo de visão. Nestes trabalhos, parece existir uma certa vontade de mar que é interrompida pela imensidão do céu.
Esta vontade de mar relaciona-se ao desejo de habitar um “espaço liso por excelência”1, ocupado mais por acontecimentos do que por coisas formadas e já percebidas. Neste espaço “liso” não há distinção entre fios nem tampouco entrecruzamentos; há apenas um emaranhado de fibras, que servem como palco e plataforma para a causalidade. Neste desejo, recusa-se aquela paisagem já formada, o espaço estriado, e aponta-se para uma tentativa de construção de uma outra paisagem e de uma outra experiência diante dela.
Ao nos debruçarmos mais atentamente nestas fotografias, percebemos que, além desta linha que se estende horizontalmente, há uma série de cortes feitos em toda sua composição. A fotografia sai do plano, e constrói-se a partir de camadas, que carregam, em si mesmas, os gestos conduzidos pelo corpo da artista. Esta marca de precisa gestualidade nos apresenta uma longa empreitada de pesquisa sobre a paisagem retratada. Kater nos convida a ultrapassarmos uma certa objetividade convencional da fotografia, e sua visão, que constantemente escaneia, disseca e remonta o objeto visível, aponta para a certa invisibilidade que existe no cerne das coisas. Kater não procura duplicar ou replicar pelo corte e pela montagem: ela nos apresenta a singularidade do fenômeno visível.
Quase um é uma metáfora para o modo pelo qual percebemos o mundo. Captamos e decodificamos, continuamente, a partir da luz incidente em nossas retinas, as imagens dos diversos fragmentos espaciais e objetos que nos circundam. Eles tornam-se paisagem a partir do momento em que os entendemos como partes de um todo. Olhar duas vezes para um mesmo lugar é modificar a paisagem. A paisagem não existe sem nossa presença e sem uma unidade temporária que nós mesmos damos a ela.
Nas operações de corte e montagem, realizadas pelo nosso olhar e escancaradas pelas fotografias da artista, revelam-se as cascas do todo paisagem que nos cerca. Estas cascas nos convidam a olhar para dentro, e não através de suas camadas. Neste movimento para dentro é que chegamos às fissuras entre o mundo concreto e o espaço por nós percebido, onde existem e ressoam imaginários profundamente sentidos e, em alguns casos, pouco falados. Em Quase um, Julia Kater nos convida a olhar para as cascas da imagem, nas quais acessamos tanto a memória do instante capturado pela fotografia quanto da performance da própria artista que recorta e remonta sua superfície. Este olhar desestabiliza a certeza de nossas representações de mundo e nos leva a habitar um espaço em que tudo é possível, inclusive vir a ser mar.
1 Deleuze, G., Guattari, F. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. Ed. 34. Rio de Janeiro, 1997.
Almost One, 2021
Ana Roman
Exhibition text of Almost one, SIM Gallery, São Paulo, Brazil, 2021.
When facing Julia Kater’s works, we have the feeling that she seems to wander alone, with her camera, along the landscapes, slowly gazing at the texture of nature before her eyes. It is throughout this wandering path that she finds the grains of saturation for her images, in which color, sound and movement are fixed from the photographic click, transforming themselves into a kind of silence and into a timeless and calm movement. In the photographic series Almost one, gathered in the artist’s solo show, she stands on an imaginary threshold between the sea and the sky. Some of the photographs depart from an idea of a continuum, which confuses us as spectators, and, in other cases, there is a low horizon line, which extends and divides our field of vision. In these works, there seems to be a certain desire for the sea that is interrupted by the immensity of the sky.
This desire for the sea is related to the desire to inhabit a “flat space par excellence”1, occupied more by events than by things formed and already perceived. In this “smooth” space there is no distinction between strands nor intersections; there is only a tangle of fibers, which serve as a stage and platform for causality. In this desire, there is a kind of refusal of that already formed landscape, of the striated space, and this points to an attempt to build another landscape and another experience in front of it.
As we look closely at these photographs, we notice that, in addition to this line that extends horizontally, there are a series of cuts made throughout its composition. The photograph comes out of the plane, and is built from layers, which carry, in themselves, the organic gestures conducted by the artist’s body. This gestural evidence is extremely precise and presents us with a long research project on the portrayed landscape. Kater invites us to go beyond a certain conventional objectivity of photography, and her perception, which constantly scans, dissects and reassembles the visible object, points to a certain invisibility that exists at the heart of things. The artist does not seek to duplicate and replicate, but, through the gesture of cutting and assembling, she presents and preserves the singularity of the visible phenomenon.
Almost One is a metaphor for how we perceive the world. We continuously capture and decode, from the light incident on our retinas, the images of the various spatial fragments and objects that surround us. They become landscape from the moment we understand them as parts of a whole. To look twice at the same place is to change the landscape. The landscape does not exist without our presence and without a temporary unity that we ourselves give to it.
In the cutting and editing operations, carried out by our gaze and opened wide by the artist’s photographs, the shells of the whole surrounding landscape are revealed. These shells invite us to look within, not through their layers. And, in this movement of the gaze, we reach the fissures between the natural world and the spaces we occupy, in which imaginaries that are often unspoken, but deeply felt, resonate. In Almost One, Julia Kater invites us to look at the shells of the image, in which we can access both the memory of the moment captured by photography and the performance of the artist herself who cuts and reassembles its surface. This look destabilizes the certainty of our representations of the world and leads us to inhabit a space where everything is possible, including becoming the sea.
1 Deleuze, G., Guattari, F. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. Ed. 34. Rio de Janeiro, 1997.